Especialista em Saúde Materna e Obstétrica
Responsável do Serviço Ginecologia/Obstetrícia
Doutorada em Ciências
da Educação
HPA Magazine 20
Numa primeira abordagem as questões relacionadas com o aleitamento materno podem ser vistas como um assunto essencialmente do foro biológico. O não amamentar concentrava-se em causas fisiológicas sendo o “ter pouco leite”, uma das causas mais apontadas que levaram ao insucesso dos processos de amamentação de milhares de bebés. No entanto, sabemos que a cultura e a sociedade onde estamos inseridos moldam profundamente a saúde e o comportamento humano. Assim, é sobejamente conhecido que a cultura é um elemento poderoso na atitude de uma mulher em relação à amamentação. Esta variedade cultural também explica e impacta as taxas de aleitamento materno nas diferentes regiões do globo.
Hoje as sociedades são multiculturais, devido aos movimentos migratórios, pelo que é exigido aos profissionais de saúde que sejam culturalmente sensíveis aquando do cuidado às mães e bebés, além de terem que se revestir de uma humildade cultural, que é um conceito cujo objetivo visa minimizar os estereótipos culturais, empoderando a paciente como meio de atingir a equidade, tornando-se assim numa ferramenta poderosa para reduzir as disparidades e melhorar os outcomes em saúde.
Sabemos também que tanto as famílias como os profissionais enfrentam dificuldades sob o ponto de vista linguístico, de alfabetização em saúde, de falta de igualdade em saúde, falta de igualdade social, preconceitos e estereótipos que podem impactar a amamentação. Dada a importância da temática é imperativo que as equipas que cuidam destas mamãs e bebés conheçam, reconheçam e validem os efeitos que os fatores socioculturais podem exercer sobre a tomada de decisão, o início e a continuação da amamentação. Outro aspeto que deverá ser incluído na equação é o contexto histórico e o seu impacto como barreira à amamentação. Temos com exemplo o caso das mulheres negras, às quais a amamentação está historicamente ligada, inclusive eram escravizadas e utilizadas como amas de leite para amamentar bebés de mulheres brancas. Sabemos que o racismo, o preconceito e a discriminação têm um impacto na amamentação, pelo que este contexto deverá ser considerado.
A própria cultura do profissional de saúde, a sua história, a realidade que reconhece como verdade, o seu grau de conhecimento e atualização nesta matéria impactam e interferem no processo de amamentação de mães e bebés.
A UNICEF e a OMS recomendam o aleitamento materno até aos dois ou mais anos, devendo ser exclusivo até aos 6 meses de vida. Apesar da introdução alimentar complementar ter lugar, o leite materno é considerado o alimento principal do bebé durante o primeiro ano de vida. No entanto, temos práticas culturais e até mesmo religiosas que desencorajam a amamentação exclusiva, descartando assim o colostro, desvalorizando-o enquanto alimento ideal para os primeiros dias de vida do bebé, bem como protelando o início da amamentação, assumindo que só após a tão conhecida “descida de leite” é que a mãe tem leite suficiente e, o mesmo oferece condições para ser oferecido ao bebé.
A própria introdução de fórmula infantil e de dispositivos que substituem a função da mama, são outros exemplos de crenças que se enraizaram e que conduzem ao desmame precoce, privando bebés e mães e, a própria sociedade, de todos os benefícios inerentes ao processo de amamentação.
Desta forma, a exploração das práticas culturais e religiosas torna-se numa reflexão que pode ser alvo de discussão sensível, mas necessária.
Globalmente há um reconhecimento da supremacia do leite humano, mas pouco se faz para apoiar e normalizar o processo. Ainda se hipersexualiza as mamas, afastando-as da sua função por inerência, o que determina em muitas culturas um impacto negativo na amamentação. A crença cultural predominante em muitas sociedades industrializadas evoluiu para que a alimentação artificial, que foi inicialmente criada para nutrir bebés em instituições, rapidamente se disseminasse com o apoio de políticas de marketing agressivo e o não cumprimento do código de substitutos de leite. A este fenómeno acrescenta-se o facto destas práticas de alimentação promoverem a liberdade da mulher, tornando-se por isso mais atraentes. Nestas culturas observa-se uma inversão total, em que a alimentação artificial se torna a norma e a amamentação a exceção.
A amamentação é um comportamento culturalmente determinado, fortemente influenciado pelo ambiente que nos rodeia. Quando este ambiente não se reveste de valor na amamentação isso impacta a sua normalização. Como resultado torna-se fulcral promover a amamentação culturalmente adaptada e equilibrar os choques culturais existentes.
Temos também algumas culturas e religiões que fornecem orientações sobre alimentos a consumir ou a evitar durante a amamentação, sem que exista um fundamento baseado na evidência.
Assim, aumentar a consciência cultural e tornar os profissionais de saúde competentes culturalmente, mesmo em relação à sua própria cultura, contribui para a disparidade em saúde. Torna-se uma mais-valia a identificação e o reconhecimento de experiências, contextos e práticas culturais de uma forma individualizada. Trabalhar com base na evidência científica, primando por realizar atualizações constantes, reduz o risco de serem fornecidas recomendações incorretas. Embora certas evidências tenham demostrado que a dor e perceção de leite insuficiente são das barreiras mais comuns à amamentação, independentemente da etnia da mulher, essas perceções variam entre culturas. Desta forma, abordar equívocos culturalmente específicos sobre estas temáticas torna-se emergente, sobretudo no período pré-natal. O profissional de saúde que trabalha com mães e bebés tem a responsabilidade moral e profissional de oferecer cuidados holísticos e informação atualizada. Quando as crenças e práticas culturais entram em conflito com as recomendações baseadas na evidência, diálogos assentes no respeito e promoção da saúde com uma forte intervenção personalizada devem ser mandatárias. Técnicas de comunicação assentes na nomenclatura LOVE são uma estratégia ótima no processo de amamentação.
A amamentação é da responsabilidade de todos; sociedades, instituições sociais e de saúde, governos e políticas protetoras devem remover a carga imposta às mulheres sobretudo em culturas de desmame precoce, pois uma redução nas taxas de amamentação constitui um problema de saúde pública onde cada um deverá assumir a sua responsabilidade e primar pela diferença. Assim, torna-se emergente abraçar a diversidade, tornando-se o profissional culturalmente competente, a fim de dar o seu contributo para a equidade na amamentação.
É também dever de todos garantir o melhor início de vida aos bebés e assegurar que as mães não são privadas do seu direito de amamentar, sendo por todos apoiadas e não substituídas naquelas que são as suas funções.